A reforma tributária foi um dos grandes temas do ano. A obstinação de alguns defensores de alguma reforma da tributação sobre o consumo merece ser elogiada. Graças a essas pessoas — juristas, economistas, políticos entre outros — muitos foram obrigadas a refletir.
Nesse sentido, analisamos a nossa trajetória como a de uma convergência em torno de certos postulados favoráveis à reforma, como a adoção de um tributo nos moldes de um IBS em detrimento da manutenção de tributos esparsos sobre o consumo, distribuídos em vários níveis da federação, em várias espécies tributárias e, muitas vezes, camuflados em tributos nem sempre tão conhecidos, como as diversas formas de contribuições (de intervenção ou setoriais) e tarifas que repercutem diretamente no preço de serviços essenciais (comunicação e energia elétrica, para ficar no básico) e que nada mais são do que tributos sobre consumo para financiar fundos ou despesas previamente estabelecidos.
Nossa convergência, todavia, não evita certas críticas que devem ser endereçadas aos pressupostos econômicos por trás de alguns modelos propostos, notadamente quando se trata de mencionar as bases teóricas e conceitualistas que originaram a PEC 45/2019 (Câmara dos Deputados)[1].
Anima-nos, ainda assim, os avanços nos debates. As visões mais extremadas parecem ceder em alguns pontos, e pode-se, finalmente, discutir como evoluir, em termos menos taxativos do que as bravatas de novo versus velho; simples versus complexo; técnico versus ideológico, típicas de manipulações semânticas schopenhauerianas.
Nesse sentido, apresentamos algumas ideias em torno da análise dos dados sociais sobre a regressividade que parece ser inerente a uma tributação sobre o consumo, mas que pode ter efeitos bem mais diretos e específicos sobre a população brasileira do que se deduziria de uma literatura conceitual e cosmopolita sobre modelos de tributação IBS 4.0.
Dividimos as ideias em dois textos. No de hoje, apresentamos os dados revelados pelas pesquisas de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018) e da última Síntese dos Indicadores Sociais (SIS/2018) e a potencial repercussão da tributação sobre a cesta básica e o consumo. No segundo, avançaremos na análise dessa repercussão e daquela sobre o consumo de serviços e moradia. A ideia é rever certas afirmações que pareceriam justificar a mera revogação de incentivos, sem, com isso, afirmar que modelos de devolução de tributos a determinados estratos não possam funcionar adequadamente.
Em outros termos: pretendemos, antes, contribuir para o debate entre as escolhas e a devida calibragem sobre estratos que podem ser prejudicados pela reforma, bem como a forma de melhor se eleger o público alvo de uma política de devolução sobre a incidência da tributação sobre a cesta básica, que não se contente com a linha abaixo da miséria.
Isso porque debater projetos que objetivem a reforma tributária sempre será algo complexo por uma razão relativamente simples: sendo a tributação o resultado de um conjunto de escolhas em torno de como se dará o financiamento do Estado Social e Democrático de Direito (e todas as atribuições daí decorrentes), discutir o tema nada mais é do que um debate acerca de como se dividirá esse custo social[2]. Se considerarmos ainda o outro lado da moeda, a do gasto público, o debate se completa em torno do seguinte questionamento: quem pagará e quem se beneficiará da atividade estatal?
Os principais projetos de reforma propõem a solução dos problemas por meio dos vetores da simplificação, neutralidade, transparência e uniformização. Buscam reformular a tributação sobre o consumo propondo a reunião das diversas exações em um tributo único (ou em dois impostos, na vertente dual[3]), uniforme e com reduzido espaço para concessão de benefícios fiscais, a ser dividido entre as três esferas da federação. Transferem para o campo do gasto público o papel distributivo e indutor de desenvolvimento que hoje reside no campo da receita pública.
Quanto a esse último ponto, presente de forma mais clara na inspiração teórica da PEC 45, e já relativizada nos aprimoramentos da PEC 110, o fundamento é o de que o tributo deve ter função exclusivamente arrecadadora. Por essa razão, defende-se, quanto ao desenvolvimento econômico, que se promova investimentos diretos de acordo com as características de cada região, ressuscitando uma razão de eficiência alocativa plasmada de vocações naturais e deterministas, que ignoram ser o combate às desigualdades sociais e regionais uma escolha política positivada em nosso texto constitucional (arts. 3º, 170 e 219 da CF 88, apenas para ilustrar). Um dos autores já chamou atenção nessa coluna sobre o tema.
Já como medida para redução da regressividade, defende-se a criação de um programa de devolução do tributo suportado pelas famílias de baixa renda, reduzido à tributação equivalente de uma cesta básica, em substituição à desoneração de tais itens. Esta proposta afirma que o tratamento favorecido hoje existente seria ineficiente em termos redistributivos, justamente por beneficiar tanto pobres quanto ricos. Afirma-se, que a preocupação redistributiva não deve ser endereçada na reforma da tributação do consumo, mas sim na futura reformulação da tributação sobre a renda e patrimônio, sem previsão de quando e se virá[4].
A importância de se debater a tributação sobre o consumo decorre do fato do Brasil possuir um índice comparativo elevado da concentração sobre tal base de incidência, em relação à média de países da OCDE. Ou seja, a crítica que devemos parar de ser jabuticabas na seara tributária não dura segundos, ao se constatar que o IBS calibrado a 25% já nos colocaria no segundo posto de maior alíquota dentre os países mencionados. E tal afirmação parece ainda mais assustadora quando se tem notícia de que o governo promete entregar uma reforma unilateral de PIS e da COFINS a 11% ou 12%, reservando para si quase metade da carga tributária que estaria em um IBS único.Aos estados e municípios sobraria algo como 13%, insuficientes em nossas simulações de meta de arrecadação.
Em termos mais diretos: um IBS nacional ou dual parece na verdade apontar para uma alíquota próxima a 29% total (somando-se com o novo tributo da reforma federal), ou seja: lá estaríamos no mais elevado posto de tributação sobre o consumo. Essa é a jabuticaba que não se critica, que se deixa para um momento posterior, o da elaboração da lei complementar
Difícil crer em um modelo teórico no qual uma tributação sobre o consumo tão elevada não teria repercussões negativas porque alguém sempre joga para o elo seguinte da cadeia, que se creditaria do imposto. Isso porque, ao fim e ao cabo, na ponta final da cadeia, lá estará o verdadeiro contribuinte: nós, o povo — justamente aquela categoria que deixou de fazer parte do instrumental analítico da economia política clássica a partir da revolução teórica marginalista de 1871[5].
Não há mágica nas trocas econômicas e os pequenos acréscimos marginais de custos possuem repercussões sérias, que não permitem elaborar apresentações de slides em que tudo flui naturalmente. Não haverá o crescimento econômico prometido se não houver a demanda efetiva de consumo, a potencializar o investimento. O mercado, dinâmico como é, não espera — estático — por círculos virtuosos se não houver renda da população.
Por trás de propostas de reforma tributária estão decisões macroeconômicas e macrojurídicas relevantes. A estratégia econômica e política de um país não se faz com base em análises de ganhos e perdas nas trocas ordinárias da vida. Eficiências alocativas naturais não explicam a riqueza das grandes potências econômicas. Não há nada de natural na criação de riqueza com base na industrialização e na inovação tecnológica. Não há nada espontâneo nas estratégias de industrialização tardia. A história da competição internacional e bélica explicam mais do que os diagramas das trocas simples e de créditos e débitos.
No final das cadeias econômicas não existe uma entidade abstrata, devoradora de IBS, salvadora da economia. Simplicidade e fim da litigiosidade são quimeras pouco factíveis e não deveriam embasar simulações de crescimento do PIB, sobretudo quando se tem um cenário de dez anos de convívio dos dois modelos de tributação (fase de transição).
A opção do Brasil pela tributação relativamente concentrada no consumo (e nas classes mais pobres) tinha justificativa no modelo econômico de crescimento do regime militar (que deu origem ao sistema tributário atual). A maior concentração sobre o consumo não pode ser camuflada em argumentos de simplicidade e naturalidade. O dever ético nos obriga a refletir sobre quem sofrerá o remanejamento da carga, de forma a subsidiar a decisão legislativa.
Com o objetivo de instigar o debate em torno do ponto, analisaremos os impactos da proposta a partir dos dados preliminares recentemente divulgados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018) bem como das informações constantes na última Síntese dos Indicadores Sociais (SIS/2018).No segundo texto, avançaremos em sugestões e possíveis conclusões parciais.
O quadro social hoje existente: desigualdade social e regressividade tributária
Afirmar que nossa sociedade é uma das mais desiguais não é algo novo, muito embora, frequentemente, esqueçamos quando discutimos temas como o presente.Segundo a SIS, a desigualdade de rendimentos para o ano de 2018 é a maior observada desde o início da medição, atingindo um Índice de Gini de 0,545. De acordo com o estudo, a partir de 2016 observa-se um aumento da renda dos estratos mais ricos da sociedade acompanhada de uma redução nas parcelas mais pobres. Como resultado, o decil superior teria concentrado renda superior aos 7/10 mais pobres da população. Respectivamente, 43,1% da renda do período seria capturado pela parcela mais rica, contra 41,2% pelos 70% mais pobres.
O relatório aponta que mais da metade dos brasileiros, 57,6% da população, vive com renda domiciliar per capita de até um salário mínimo, ou seja, R$ 954,00 mensais, e é responsável por algo próximo a 22,2% do rendimento total dos domicílios nacionais.
Quanto à pobreza, no ano de 2018, 6,5% da população brasileira vivia com menos de US$ 1,90 diário per capita, ou seja, abaixo da linha da pobreza absoluta, de acordo com o Banco Mundial. Entretanto, se considerarmos a classificação do Brasil como sendo um país de renda-média alta, tal limite seria de US$ 5,50 diário per capita, elevando o número de pobres para 25,3% da população. Esse número corresponde a, aproximadamente, 52,5 milhões de pessoas vivendo com até R$ 420,00 mensais, ou 44% do salário mínimo da época.
Os dados são confirmados pela POF, que indica um quadro no qual apenas 2,7% das famílias brasileiras receberiam acima de R$ 23.850,00 mensais, ou 25 salários mínimos mensais, concentrando cerca de 19,9% de toda a renda familiar do período. Ao passo que 23,9% das famílias — a parcela mais pobre — receberiam até dois salários mínimos mensais, ou algo em torno de R$ 1.908,00, correspondendo a tão somente 5,5% da renda nacional. E essa desigualdade se reflete não apenas nas condições de vida da população (tanto a SIS quanto a POF indicam pioras em condições de moradia e acesso à educação, para não citar problemas com saúde, saneamento básico, entre outros), como também nos distintos padrões de consumo.
De acordo com a POF, as famílias mais pobres destinam a maior parte de suas despesas para o consumo corrente (92,6%), enquanto a parcela mais rica consome proporcionalmente menos (66,3% de suas despesas são destinadas a esse gasto). A diferença se observa ainda nos tipos de gastos. Entre os mais pobres, gastos essenciais como alimentos e habitação ocupam a maior parte das despesas familiares (respectivamente 22,0% e 39,2%), enquanto que o extrato mais rico dedica proporcionalmente menos com os mesmos itens (7,6% e 22,6%). Outros gastos que ainda merecem destaque no orçamento das famílias pobres são as despesas com medicamentos (4,2%) e transporte urbano (2,1%). Esses valores se sobressaem em comparação com o extrato mais rico (1,4% e 0,4% dos seus gastos, respectivamente).
Esses distintos padrões de consumo tendem a repercutir na distribuição do ônus tributário entre as classes sociais, uma vez que nossa carga tributária é majoritariamente composta por tributos indiretos (apenas a tributação sobre o consumo correspondeu à 48,44% da arrecadação de 2017). Por não observar a capacidade contributiva, esse modelo de tributação apresenta forte tendência regressiva, onerando proporcionalmente mais as classes mais pobres, que destinam a maior parte de seu orçamento para o consumo.
Por outro lado, a tributação direta — renda e patrimônio — tendem a exercer fraca pressão na redução da regressividade. Seja pelo reduzido peso que representam na arrecadação, seja em função de diversos tratamentos favorecidos conferidos a renda do capital ou a certos tipos de propriedade[6].Como resultado,temos as classes mais pobres comprometendo parcela proporcionalmente maior do orçamento familiar com o pagamento de tributos embutidos em seu consumo. E isso em inobservância da capacidade contributiva manifestada, pelo simples fato de que o ato de consumir representa um peso maior no seu orçamento.
Esses dados não costumam ser realçados, muitas vezes, porque se faz uma análise em termos absolutos das pesquisas sobre o consumo como a POF, em que se defende que a classe média e mais rica consumiria mais e se aproveitaria mais — em termos nominais e absolutos — do que os estratos mais pobres. No próximo texto, criticaremos essa abordagem e realizaremos considerações em torno da repercussão tributária sobre a cesta básica, o consumo e moradia (aluguel), bem como avaliaremos a ideia de devolução da carga tributária decorrente do fim da desoneração da cesta básica.
[1]Nesse sentido, a PEC 110/2019, por ter sofrido um debate mais profundo na CCJ do Senado, em que várias emendas foram apreciadas, com o acatamento de parte delas, parece ter evoluído mais, no sentido de se aparar as arestas normais que ocorrem quando um projeto conceitual procura conformar a realidade de cima para baixo.
[2] GASSEN, Valcir. Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012.
[3]Defendemos a ideia de um IBS trino, iguais em sua regra de competência, lei complementar e plataforma digital, mas distintos em suas leis ordinárias federal, estaduais, distritais e municipais. Ver https://www.conjur.com.br/2019-ago-18/estado-economia-desafio-propostas-reforma-tributaria.
[4]Registre-se nossa desconfiança em torno de uma reforma de imposto de renda para cumprir tal desiderato de redutor de regressividade, já que as notícias mais próximas sobre uma reforma nesse imposto dizem mais respeito à relação com as novas formas de avaliação contábil e à redução de alíquota do IR das pessoas jurídicas com a consequente tributação dos dividendos da classe média (que não operam com holdings patrimoniais e estrutura societária complexa, por vezes sediada em outros países).
[5]Sobre o tema, ver ANDRADE, José Maria Arruda de. Economicização do Direito Concorrencial. São Paulo: Quartier Latin, 2014, subcapítulo II.3.
[6] SILVEIRA, Fernando Gaiger e outros. Qual o impacto da tributação e dos gastos públicos sociais na distribuição de renda no Brasil? Observando os dois lados da moeda. in Progressividade da tributação e desoneração da folha de pagamentos : elementos para reflexão / organizadores: José Aparecido Carlos Ribeiro, Álvaro Luchiezi Jr., Sérgio Eduardo Arbulu Mendonça. Brasília : Ipea : SINDIFISCO : DIEESE , 2011
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 8 de dezembro de 2019 .
Autores:
José Maria Arruda de Andrade é professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).
Pedro Júlio Sales D’Araújo é pesquisador visitante bolsista na Westfälische Wilhelms-Universität Münster (Alemanha), doutorando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP); Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB); e especialista em Direito Tributário pela FGV/SP. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal para assuntos tributários. Advogado.
Advogado e coordenador de equipes na área tributária desde 1997. Atuação em direito tributário, financeiro e econômico.
Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo desde 2008, ministrando aulas no curso do bacharelado e com disciplinas próprias no curso de mestrado e doutorado.