Essa coluna é dedicada à memória do grande artista André Matos (14/09/1971 a 08/06/2019). R.I.P.
Tendo em vista a repercussão de meu texto anterior[1], em que debati que uma reforma tributária não pode ignorar o mandamento constitucional de redução das desigualdades regionais e sociais, aproveito para avançar um pouco mais em um dos aspectos relacionados ao tema: o de que se pode e deve revogar todos os incentivos e deixar no seu lugar os gastos diretos no orçamento.
O ponto defendido por mim era: reformas simplistas não podem ignorar regimes jurídicos que hoje regulam políticas de desenvolvimento regional sem maiores reflexões, avaliações sérias e sem propostas alternativas que sejam reais.
Os estudiosos que defendem algum tipo de reforma, notadamente, a mais ampla delas, representada pela PEC 45/2019, apresentada pelo deputado Baleia Rossi (MDB/SP) à Câmara dos Deputados, costumam mencionar que políticas redistributivas de natureza tributária são antiquadas e ineficientes e que os recursos para tal desiderato deveriam ser obtidos mediante orçamento federal, no que deduzo que eles estão a se referir a gastos diretos no orçamento.
Trata-se do argumento de que sistema tributário não deve se ocupar de questões redistributivas e que políticas econômicas para esse fim devem ser tratadas diretamente no orçamento (gastos diretos).
Como dito anteriormente, o design de um novo sistema tributário inovador e simples é sedutor. Ter a liberdade de repensar toda a estrutura federativa, criando a figura de competência tributária comum e simultânea e buscar soluções para encerrar complexidades – injustificadas ou não – anima qualquer estudioso.
Mais do que animar, até, pode-se dizer que cria uma verdadeira paixão pelo plano teórico da reforma, construída a partir da literatura que comenta alguns casos de êxito em outros países.
Ainda assim, há que se separar alguns argumentos para se evitar a retórica de eleição de espantalhos do presente para a venda de soluções inovadoras quaisquer. Ou, de outra forma ainda mais direta: os inúmeros problemas do presente não nos autorizam a comprar qualquer ideia que se apresente. Inovações precisam dar conta da realidade brasileira no que ela tem de complexa. Não é a falsa simplicidade importada que dará conta de encaixar a realidade na marra, pois o que não se encaixa, o que fica de fora, é, justamente, a existência dos “outros”, aqueles que muitos pensam que têm vocação para não ter direitos.
Não defendo que o sistema esteja bom, mas gostaria de apontar, outra vez, a questão regional e social, pois a resposta decorada e fácil de que isso fica para um segundo momento, o da discussão orçamentária, não me convence.
Nesse texto ligeiro gostaria de refutar dois pontos: o de que política regional se confunde com guerra fiscal (desobediência ao direito posto) e de que se pode revogar alguns dos incentivos regionais e sociais em troca de gastos diretos orçamentários.
Primeiro Ponto: guerra fiscal entre estados e municípios
A defesa da redução das desigualdades regionais e sociais não deve ser confundida com guerra fiscal.
Guerra Fiscal é desobediência ao direito posto. Não defendo que o ator principal do desenvolvimento econômico devam ser o estados e nem os municípios. Guerra fiscal não é política legítima de desenvolvimento econômico. Desobediência à Constituição deve ser combatida por meios próprios. As leis complementares 157 e 160 são exemplos disso.
O ponto aqui é: não se deve vender um projeto de reforma que combata ilicitudes por meio do esvaziamento da competência legislativa dos entes subnacionais, ainda que se tente mitigar esse esvaziamento com as sutilezas de se permitir aumentos e reduções lineares de alíquota global do novo imposto. A melhor cura de uma doença não é a morte do paciente [2].
Quando menciono a importância da reflexão do desenvolvimento regional em seu aspecto fiscal, não estou tratando da guerra entre entes da federação. Esse é um espantalho que não cabe aqui.
Menciono, isso sim, o dever da República Federativa de reduzir desigualdades regionais e sociais, de acordo com as respectivas regras constitucionais de competência legislativa (artigos 3º e 170 da Constituição) [3].
No plano tributário, como há vedação ou restrições de concessão de benefícios no âmbito do ICMS (afora a seletividade) e ISS, as principais alternativas de manejo de setores ou alíquotas se dão no âmbito federal.
E aqui registro que sempre fui um crítico daquela outra ideia simples e inovadora que seria a não cumulatividade do PIS e COFINS, que nada mais foi do que transformar duas contribuições da seguridade social – que deveriam atender a esse fim e com base em uma lógica atuarial – em um “imposto sobre o consumo” perverso, complexo e alimentador de litígios (quem acreditou que a ausência de definição do que seria “insumo” não teria consequências dramáticas?)[4].
Não sou defensor de vários dos incentivos tributários complexos. Também considero que nossas experiências em política econômica fiscal foram exageradas. Mas, daí a achar que se pode ignorar décadas de investimento na redução das desigualdades sociais e regionais é um salto que nem mesmo a paixão cega por manuais de boa receita de impostos deveria permitir.
Segundo ponto: gastos diretos ou indiretos como instrumento de política econômica? Ou: é só simplificar que tudo se resolve no orçamento?
Essa pergunta é a mais séria, sempre mais controvertida e sem resposta definitiva para os estudiosos do uso de instrumentos fiscais de política econômica.
Obviamente, apenas os ingênuos ou interessados em resultados específicos defenderão a existência de uma resposta objetiva para a questão.
Alguns estudiosos de índole mais conservadora do ponto de vista política e mais liberais do ponto de vista econômico defenderão a retração do Estado como ator da manutenção da economia nacional. Gastos orçamentárias que implementam proteção ao emprego e políticas redistributivas sempre serão consideradas ineficientes e antiquados. Os embates entre seguidores de Keynes e de Milton Friedman demonstram bem esse dinâmica de oposição argumentativa.
Mas, afora esse viés mais simplista, saber se é mais eficiente o Estado efetuar um gasto de forma direta no orçamento ou se valer de instrumentos indutores de comportamento por meio de renúncias fiscais (gastos indiretos) vai depender, definitivamente, de uma análise sobre quais são os objetivos, as metas, os meios e os controles para tal fim.
Nada muito diferente do que venho sustentando há um tempo por aqui [5]: políticas econômicas que se valem de gastos diretos ou indiretos precisam ter governança e análise de resultados. Além disso, não dá para tratar o tema no agregado (todas as renúncias a uma só vez). Há diferença de políticas de curto prazo e de políticas estruturantes de longo prazo, apenas para ficar na distinção mais óbvia.
A premissa de que uma política de longo prazo como a redução de desigualdades regionais deva ter um resultado positivo para cada real gasto, por exemplo, é questionável. É possível que a mera eficácia (atingimento de certos resultados) baste e que a eficiência não possa ser levada de forma estrita, assim entendida como análise rígida de custo/benefício. Até porque os números que os defensores da revogação dos incentivos regionais nacionais são absurdamente questionáveis e superestimados.
A construção de uma nação não se dá por meio de contas simples. Muitas vezes, um grau de gasto (resultado não positivo) será o preço a se pagar pela decisão histórica desse território imenso ter permanecido como uma república indissociável. Por vezes, os manuais de economia explicam bem as trocas econômicas ordinárias, mas não as decisões políticas nacionais. A nossa história deveria ser o nosso primeiro manual.
Vários fatores determinarão a melhor opção por um gasto direito ou indireto (renúncia), notadamente o de eficiência alocativa. Qual a melhor forma de entregar a disponibilidade econômica ao sujeito beneficiado? Há uma forma eficaz de direcionar o valor (como o cartão do Bolsa Família) ou a técnica da renúncia é a melhor? Isso dependerá dos sujeitos e fins eleitos pelo legislador.
A simplicidade pode ser bela, desde que não tragicamente reducionista.
Admiro defesas apaixonadas, mas será que a simplicidade que está sendo vendida não terá um preço muito alto?
Jogar todos os prestadores de serviços em um tributo novo, a pretexto de eliminar as discussões conceitualistas entre mercadorias e serviços. Atribuir à União um tributo que sequer seria seu de origem (tributação sobre consumo virou o resultado do aríete criado pela não cumulatividade do PIS e da Cofins; além disso, e o IPI sempre teve função extrafiscal). Tudo isso esperando, na ponta da repercussão econômica, contribuintes que pagariam, felizes, o preço da modernidade neozelandesa.
Muitas décadas foram necessárias para que mentes brilhantes nos ensinassem que não basta importar teorias que prometiam que o desenvolvimento econômico seria só questão de tempo e de neutralidade. Muito esforço foi feito para que se pensasse a América Latina como uma região com suas características peculiares. E, ainda mais, que o Brasil, por sua extensão territorial, necessitaria discutir desenvolvimento econômico como algo que inclui a questão social, cultural e tecnológica.
A preocupação com desenvolvimento regional constitucionalizada como objetivo fundamental da República é a decisão política de que não basta buscar crescimento econômico sem reduzir as diferenças entre pessoas e regiões.
Quando se defende que uma reforma pode igualar tudo e que a melhor técnica redistributiva é a orçamentária, não se está trocando forma de financiamento, mas omitindo uma nova decisão constitucional (mais próxima da inconstitucionalidade).
O que seria política orçamentária redistributiva estruturante orçamentária? A discussão anual sobre alguns trocados assistencialistas a serem direcionados a regiões desfavorecidas? O espaço do debate para gastos diretos, por conta das imposições constitucionais, é quase restrito a emendas para direcionar ambulâncias a municípios.
Quem trocaria uma garantia constitucional por uma política de gastos a ser debatida anualmente e sem espaço orçamentário? A resposta simplista de que as políticas regionais serão decididas no orçamento não se sustenta.
Quando certos temas são constitucionalizados, o são por conta de nossa história. A simplicidade reducionista que troca a nossa cultura pelo manual não traz recompensas que não a promessa de aumento global de PIB.
A velha retórica do “primeiro para crescer, para depois dividir” reaparece repaginada. Arrecadação depende da economia e a economia está impregnada por incertezas, mais uma lição de Keynes. Tirar agora e prometer depois é técnica de vendedor.
No fundo, o que sobra ainda é a boa retórica das vantagens absolutas (Adam Smith): cada um deve ficar com a sua vocação, ainda que ela seja apenas a de ser abandonado à sua própria sorte.
1 https://www.conjur.com.br/2019-mai-19/reforma-tributaria-nao-ignorar-diferencas-entre-regioes.
2 Excelentes os comentários de Heleno Torres, ao defender que a boa reforma seria aquela de natureza infraconstitucional. https://www.conjur.com.br/2019-jun-05/consultor-tributario-reforma-tributaria-infraconstitucional-avancar.
3 “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[…]
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
[…]”
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 9 de junho de 2019, 13h32
Advogado e coordenador de equipes na área tributária desde 1997. Atuação em direito tributário, financeiro e econômico.
Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo desde 2008, ministrando aulas no curso do bacharelado e com disciplinas próprias no curso de mestrado e doutorado.